ANNE FRANK NÃO MORREU #8

Iolanda
12/03/2020

Querida Anne,
Escrevo-te num dia que sei que consideravas especial – o Dia Internacional da MULHER, criado há 120 anos, em 20 de fevereiro de 1909, em Nova York, numa jornada de manifestação pela igualdade de direitos civis e em favor do voto feminino.

blueimp Gallery
Veja todas as imagens na GALERIA DE IMAGENS disponível no fim desta página.

 


Querida Anne,

Escrevo-te num dia que sei que consideravas especial – o Dia Internacional da MULHER, criado há 120 anos, em 20 de fevereiro de 1909, em Nova York, numa jornada de manifestação pela igualdade de direitos civis e em favor do voto feminino.


Passaram 75 anos desde que partiste. Gostaria de te dizer que tua dor e sofrimento foram de tal forma marcantes que o Homem finalmente tinha percebido que não pode condenar o outro por não partilhar das mesmas ideologias. Contudo, não te posso mentir… Hoje, estou a escrever-te para te contar que, em pleno século XXI, estão a aparecer campos de concentração, outra vez, mas desta vez para muçulmanos na China.


Sei que esta informação te deve estar a deixar horrorizada, eu também fiquei, igualmente, aterrorizada quando soube. Desde que tive conhecimento deste horror por que estas pessoas estão a passar, procurei pesquisar mais sobre os motivos que estariam a levar o governo chinês a tomar estas medidas cruéis.


Após passar algum tempo a pesquisar, descobri que os muçulmanos que estão a ser enviados para campos de concentração são de uma etnia específica, uigure. Apesar de viverem na China há séculos, os uigures conseguiram manter a sua cultura, preservando a língua nativa, a religião (islâmica), tradições como o jejum no Ramadão e a abstenção da ingestão de carne de porco e álcool. Todas estas práticas fazem parte da tradição muçulmana e, como deves ter percebido, são totalmente inofensivas.


A comunidade uigure tem uma população de 10 milhões em Xiinjang (província chinesa) e, por isso, acabou por se tornar extremamente influente na região, o que desagradou à comunidade chinesa tradicionalista. O governo chinês discorda das práticas religiosas da comunidade, considerando-as extremistas. Como é que o governo chinês pode considerá-los extremistas só por não partilharem da mesma cultura?


Após ser pressionada pela comunidade internacional, a China pronunciou-se publicamente em relação às acusações, negando a existência de campos de concentração, atribuindo-lhes o nome de campos de "reeducação", para onde, segundo o governo, só são enviados extremistas religiosos. Considerando que a China está a qualificar “coincidentemente” toda a etnia uigure como extremista, já estás a ver o tipo de tratamento que estão a receber.


Nesses campos, os detidos teriam a oportunidade de aprender mandarim e alguns aspetos da cultura e ideologia chinesas, facilitando a sua integração na comunidade, bem como explorar as suas capacidades laborais, de modo a adquirirem mais formação e aprimorarem as suas capacidades de trabalho.


Pois, estou a ouvir-te pensar em “Arbeit macht frei” que também se lia à entrada de Auschwitz!


Se a comunidade internacional acreditasse nestas afirmações, ainda mais ignorado seria este caso. Contudo, tal como tu, existem vítimas que documentam o que realmente está a acontecer em Xiinjang.


Ablet Tufrsun Tohti, de 29 anos, foi preso no início do envio dos uigures para os campos, passando aí "apenas" um mês, numa altura em que as penas ainda eram reduzidas e havia possibilidade de saída. Acreditas que Ablet confirmou que os detidos eram obrigados a correr para os pátios dos edifícios num minuto ou eram espancados? Além de receberem este tratamento, ainda eram obrigados a cantar músicas a homenagear o Partido Comunista Chinês e a recitar a legislação chinesa, e, se não o fizessem corretamente, eram punidos.


Este antigo prisioneiro foi um dos últimos uigures a conseguir sair da China antes da apreensão geral dos passaportes da comunidade. Assim como outros, deixou a família para trás e não sabe se a mesma está a ser vítima desta assustadora perseguição. Sei que consegues entender esta sensação de desespero, pois também tu foste separada de uma das pessoas de que mais gostavas quando foste para os campos de concentração, o teu pai.


“Consigo imaginar a morte da mãe algum dia, mas a morte do pai parece inconcebível. É muita maldade minha, mas é assim que me sinto [...].” in “Diário de Anne Frank”


Mas o governo chinês sabe, no fundo, que não criou campos de “reeducação” para a comunidade muçulmana. Educação é a 'aplicação dos métodos próprios para assegurar a formação e o desenvolvimento físico, intelectual e moral de um ser humano; pedagogia, didática, ensino' in “Ciberdúvidas da Língua Portuguesa” [consultado em 04-02-2020]. Tudo o que se está a realizar nos campos, desde as torturas até as atividades que exploram os prisioneiros, são métodos comprometedores do desenvolvimento físico e mental de qualquer pessoa, por isso jamais poderão ser chamados de educativos.


Infelizmente, Anne, ainda temos um longo caminho e demasiados erros para retificar. É triste dizer que o teu sofrimento e de mais milhões de vítimas da Segunda Guerra Mundial não foi suficiente para o ser humano aprender a tratar o outro com respeito.


Apesar de tudo o que te contei, não desanimes, ainda há quem lute para acabar com estas violações dos direitos humanos. A ONU, apesar de ainda não ter obtido sucesso neste caso, já recebeu vários relatórios a ele referentes, divulgados por organizações como a Amnistia Internacional e a “Human Rights Watch”.


Mesmo sabendo que, dificilmente, este problema vai ser resolvido rapidamente, o facto de a comunidade internacional estar atenta, já é um sinal de esperança, não achas?


Por muito frustrante que seja ler sobre a tortura que os uigures estão sofrer, ainda acredito que o testemunho de vítimas como Ablet podem ser essenciais para evitar que este caso alcance a dimensão que o teu e de outros judeus tiveram.
Obrigada, Anne, por me relembrares que, mesmo quando há maldade no mundo, vale sempre a pena acreditar na bondade humana.


"Apesar de tudo ainda acredito na bondade humana" in “Diário de Anne Frank”


Tenho muito orgulho em ti!
Com amor,

Iolanda


PS.: Para ti que estás a ler o artigo, se quiseres saber mais sobre os campos de concentração para muçulmanos na China, aconselho-te a ver este vídeo que apresenta algumas informações sobre o que está a ocorrer nos campos e sobre o posicionamento do governo chinês em relação aos uigures. Podes consultar a hiperligação <https://www.youtube.com/watch?v=V66rPu1D_GQ> ou <https://www.youtube.com/watch?v=x9bjTpXy-V4>
.

 

 

 

GALERIA DE IMAGENS